Este ensaio clínico randomizado, open label, single-blinded, que recrutou pacientes com 60 anos ou mais e dispnéia (NYHA≥2) em cenário hospitalar e na atenção primária, não encontrou diferença significativa na qualidade de vida autorrelatada (componente físico) em 6 meses em adultos com fibrilação atrial crônica (definido como paciente sem perspectivas de normalização da frequência cardíaca) e sintomas de insuficiência cardíaca que foram tratados com digoxina em baixa dosagem ou bisoprolol.
Contudo, os eventos adversos relacionados ao tratamento, incluindo a colocação de marcapasso, foram mais frequentes no braço tratado com bisoprolol (142 vs. 29 eventos adversos, incluindo 3 vs. 0 implantes de marcapasso, respectivamente).
Ainda há dúvidas sobre o manejo ideal de adultos com sintomas de insuficiência cardíaca e FA crônica, motivo que justificou a realização desse ensaio clínico inglês. Os pacientes elegíveis (n=161) receberam, aleatoriamente e de forma mascarada, digoxina (dose média = 161 mcg/dia) ou bisoprolol (dose média = 3,2 mg/dia) e tiveram sua qualidade de vida mensurada pelo instrumento SF-36 (36-Item Short Form Health Survey).
Um alto percentual dos participantes – 94% – completou o protocolo de estudo em 6 meses. Na análise de intenção para tratar, não houve diferenças significativas entre os grupos tanto em relação à frequência cardíaca (em repouso e no esforço) quanto nos escores médios de qualidade de vida em 6 e 12 meses, independente do quadro clínico e função cardíaca inicial.
Morreram 4 pacientes (5,0%) no braço digoxina e 7 pacientes (8,8%) no braço bisoprolol, sendo 1 (1,3%) e 4 (5,0%) mortes relacionadas a causas cardiovasculares, respectivamente. Destaca-se também que os pacientes randomizados para digoxina utilizaram menos a atenção primária. Esse perfil de segurança favorável à digoxina se deveu à baixa dosagem utilizada no estudo, o que importa tendo em vista uma janela terapêutica muitas vezes difícil de ajustar na prática clínica com essa medicação. São necessários mais estudos para melhor avaliar eventos adversos cardiovasculares maiores, já que este estudo não teve poder estatístico para fazer essa comparação.
Kotecha D, Bunting KV, Gill SK, et al, for the Rate Control Therapy Evaluation in Permanent Atrial Fibrillation (RATE-AF) Team. Effect of digoxin vs bisoprolol for heart rate control in atrial fibrillation on patient-reported quality of life. The RATE-AF randomized clinical trial. JAMA 2020;324(24):2497-2508. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2774407
Este ensaio clínico é relevante para médicos de família e clínicos em geral tendo em vista abordarem problemas clínicos comuns (fibrilação atrial + insuficiência cardíaca) na prática cotidiana cuja evidência científica era frágil e escassa. Tendo em vista que o controle da frequência cardíaca é muitas vezes o único tratamento para melhoria da qualidade de vida nestes pacientes, que o uso de betabloqueadores nessas situações é comum na ausência de evidências mais sólidas, e que médicos são receosos e lançar mal da digoxina em sua prática, tem-se aqui um trabalho que tem o potencial de mudar a prática, mesmo que alguns protocolos (ex.: Sociedade Europeia de Cardiologia) ainda recomendem os betabloqueadores como primeira linha para controle de frequência cardíaca e melhoria da qualidade de vida em pacientes com fibrilação atrial e insuficiência cardíaca congestiva.