A abordagem das pessoas que usam drogas (substâncias psicoativas), sejam lícitas ou ilícitas, não difere muito em linhas gerais entre as diversas drogas, particularmente no âmbito da atenção primária à saúde, porquanto o trabalho dos profissionais de saúde nesse contexto deve seguir alguns princípios básicos, principalmente o estabelecimento de um bom vínculo terapêutico e o manejo de comorbidades que porventura existam.
O estabelecimento de vínculo adequado entre o profissional de saúde e a pessoa usuária de droga pode ser considerado o pilar estruturante do tratamento desse tipo de problema. Para que o vínculo seja criado com sucesso, deve-se atentar ao fato de que muitas vezes o indivíduo atendido ainda se encontra numa fase pré-contemplativa, ou seja, não se sente com um problema relacionado ao seu padrão de consumo de droga (não raro a demanda inicial pela suspensão do consumo é da família). Portanto, é sensata uma abordagem que prime por questionamentos abertos, isentos de confronto e preconceitos, com conhecimento das técnicas de entrevista motivacional.1 Tal estratégia permite ao usuário de droga melhores condições de pensar sobre sua situação, com maior chance de ele próprio optar por alguma modificação em sua relação com a substância química psicoativa.
É possível classificar didaticamente os principais quadros clínicos associados ao consumo de drogas em intoxicação aguda, uso nocivo (abusivo), síndrome de dependência ou síndrome de abstinência. Há que se frisar, no entanto, que os diferentes padrões de consumo e risco relacionados às drogas podem coexistir. O novo conceito dos transtornos relacionados a essas substâncias enfatiza a necessidade de verificar padrões individuais de consumo, que podem variar muito de intensidade ao longo de uma linha contínua. Ademais, qualquer padrão de consumo tem o potencial de acarretar problemas ao indivíduo. Desta forma, deve-se avaliar a relação entre cada indivíduo com a droga consumida e quais os riscos e/ou prejuízos envolvidos naquele momento em sua vida.2
Na avaliação clínica inicial, é preciso abordar o padrão e o tipo de substâncias psicoativas utilizadas (comumente há mais de uma), checar se já houve tratamento anterior, pesquisar comorbidades clínicas e psiquiátricas, bem como entender o histórico familiar, delinear o perfil psicossocial do indivíduo e realizar o exame do estado mental. Quanto ao exame físico, não há sinais patognomônicos a se verificar, apesar de alguns achados levantarem suspeita de uso de drogas (por exemplo, aceleração ou lentificação da fala e do pensamento, irritação nasal e de conjuntivas, cicatrizes de punção venosa em membros superiores, queimaduras em dedos das mãos, entre outros). Finalmente, no que tange a exames complementares, alguns órgãos e funções mais tipicamente afetados pelo uso de substâncias psicoativas devem ser avaliados com dosagens de transaminases, hemograma e sorologias para infecções sexualmente transmitidas. Exames toxicológicos de urina são úteis quando houver dúvida relativa ao diagnóstico de intoxicação por drogas1, em situações de emergência médica.
A abordagem terapêutica em si precisa se basear em um plano definido conjuntamente com o indivíduo que busca se tratar. Pacientes sem critérios de gravidade e virgens de tratamento parecem se beneficiar de intervenções psicossociais breves, realizadas no próprio contexto primário de atenção à saúde. Ressalta-se que o aconselhamento nessa área não é exclusividade do médico. Ao contrário, desfechos positivos no tratamento da dependência química têm sido associados à atuação de outros profissionais de saúde que se envolvem no tratamento em questão, fornecendo estrutura, monitoração e acompanhamento da conduta, encorajamento da abstinência, encaminhamentos quando necessários, ou auxílio com questões legais.1 As novas técnicas terapêuticas (especialmente as intervenções breves), portanto, tornaram a dependência de substâncias psicoativas um assunto passível de ser conduzido por um espectro maior de profissionais, inclusive através da abordagem multiprofissional no âmbito da atenção primária à saúde.2
O aconselhamento para que a pessoa interrompa ou diminua o consumo de qualquer droga deve ser claro e objetivo, baseado em informações personalizadas obtidas durante a anamnese. A intervenção breve é uma estratégia de abordagem estruturada por seis elementos reconhecidos pela sigla FRAMES, cujas letras representam as iniciais das seguintes palavras em inglês: Feedback (resumo das avaliações feitas até o momento sobre as repercussões da droga no paciente), Responsibility (ênfase na responsabilidade pessoal do paciente pela mudança), Advice (recomendações claras para que o paciente modifique seus hábitos), Menu of options (apresentação de um menu de opções para mudança), Empathy (empatia) e Self-efficacy (reforço da autoeficácia).1,2
A estratégia acima mencionada é particularmente eficaz em casos de uso de drogas com gravidade leve a moderada. Pode ser aplicada com tempo limitado e tem como foco a mudança de comportamento da pessoa. Sabe-se que o uso da intervenção breve em serviços de atenção primária, com uma consulta mensal de até 15 minutos, ao longo de 4 a 5 encontros, pode ser efetivo na redução do padrão de consumo de álcool e outras substâncias psicoativas.2
Convém lembrar a importância de incluir a família na abordagem dos problemas em pauta, haja vista ser habitualmente ela o contexto problema e, também, potencial recurso terapêutico. Além disso, podem ser úteis, em determinadas situações, estratégias de redução de danos, gerenciamento interdisciplinar de casos mais complexos e intervenções comunitárias.1
Também é importante ter em mente as principais indicações (isoladas ou em associação) de internação hospitalar para pessoas que usam drogas1:
– Condições médicas ou psiquiátricas que exijam observação constante (estados psicóticos graves, ideação suicida ou homicida, debilitação ou abstinência grave) e complicações orgânicas devidas ao uso ou à cessação do consumo da droga;
– Dificuldade para cessar o uso de drogas, apesar dos esforços terapêuticos no nível primário de atenção à saúde;
– Ausência de adequado apoio psicossocial que possa facilitar o início da abstinência;
– Necessidade de interromper uma situação externa que reforce o uso da droga.
Vale ressaltar que a abordagem descrita anteriormente tem um enfoque cognitivo-comportamental. Portanto, parece válido apresentar um contraponto, através de uma reflexão pautada pelo olhar psicanalítico. Sob este prisma, pressupõe-se que as adicções estão sempre ligadas a uma tentativa do sujeito de preencher “vazios existenciais” decorrentes da primitiva angústia de desamparo.3 Entende-se, também, que o problema central das pessoas que desenvolvem problemas com drogas seja uma espécie de fuga. Trata-se de indivíduos que estariam buscando uma maior integração entre seus aspectos conscientes e inconscientes, todavia interromperam sua busca demasiado cedo e ficaram estagnadas na droga como um âmbito substitutivo da verdadeira integração.4
O indivíduo dependente de drogas ilícitas, identificando-se com a substância química como objeto substitutivo, e deste objeto nunca se cansando, tende a desenvolver uma “fome” insaciável, necessitando porções cada vez maiores desse “alimento”. Habitualmente, a pessoa não percebe que, quanto mais consome a droga, mais sua “fome” aumenta.4 Trata-se, pois, de um genuíno círculo vicioso, cujo final costuma ser trágico quando não interrompido pela integração e ressignificação dos aspectos inconscientes que motivaram tal substituição. Este processo de obtenção de verdadeiras mudanças psíquicas (a cura) demandaria a lenta elaboração de insights produzidos pelo trabalho analítico, muito embora benefícios terapêuticos talvez já sejam percebidos desde as primeiras elaborações.3